domingo, 29 de novembro de 2009

“La main de gloire”

L.F. Veríssimo
(Zero Hora, 29/11/2009)

O próprio Thierry Henry pede que o jogo seja repetido. Ele está sendo corroído pelo remorso. Levou, sim, a bola com a mão na jogada que resultou no gol que classificou a França para a Copa do Mundo – e desclassificou a Irlanda. Thierry Henry tem sonhos. Num dos sonhos, gnomos irlandeses invadem o seu quarto enquanto ele dorme e levam a sua mão! Thierry Henry acorda sem sua mão esquerda, a que ajeitou a bola para o passe. A mão criminosa, levada para Dublin, para ser julgada. Em outro sonho, a seleção da França entra em campo para o seu primeiro jogo na Copa da África do Sul, e o estádio inteiro agita a mão esquerda no ar enquanto vaia os franceses, e Thierry Henry identifica a sua própria mãe no meio da multidão gritando “Vergonha! Vergonha!”. “Honte! Honte!” A seleção tenta se refugiar no vestiário mas as mãos vão atrás e derrubam os jogadores com cócegas e tapas. Ouve-se no estádio uma nova versão da Marselhesa: Alonsanfã de la patrie, la main de gloire est arrivê... Thierry Henry não consegue comer. Pela sua saúde – sem falar na sua honra e na honra da França – é preciso que o jogo seja anulado e jogado outra vez. Mas a Fifa resiste.
– Pense na complicação, Thierry. Anular um jogo e organizar outro... Mudar todo o nosso calendário... Não dá.
– Mas eu não aguento mais o remorso. Não durmo, não como... E o bom nome da França?

– Temos que ser práticos, Thierry. Aconteceu, foi lamentável, mas não se pode mudar a História. E o bom nome da França, que já resistiu a tanta coisa, certamente resistirá a mais isto. O governo de Vichy foi bem pior.
– Sim, mas e eu? A minha história, o meu bom nome? E a minha saúde?

– Tudo isso passará com o tempo, Thierry. E tem outra coisa.
– O quê?

– Pense no precedente.

A Fifa tem razão. Repetir o jogo por causa da mão e da culpa de Thierry Henry criaria um precedente incômodo. O remorso de Thierry Henry poderia contagiar o planeta. O arrependimento e a ânsia de confessar erros e corrigir a história poderia extrapolar do mundo do futebol (outras mãos decisivas que o juiz não viu, pênaltis fingidos, campeonatos comprados) para o da política (“Roubei, roubei sim! Quero que me cassem!”) e dos negócios (“Superfaturei! Explorei meus empregados! Não mereço a minha fortuna!”) e acabar numa orgia de autorrecriminação e reparação, culminando – por que não? – com as Américas sendo devolvidas aos índios.

Mas Thierry Henry insiste. Sua culpa precisa ser expiada.

Maradona telefona.

– Tchê, Henry. Qué pasa?
- Foi o passe que dei depois de ajeitar a bola com a...

- No, no. Qué se pasa por ai? Que história é essa de querer voltar atrás e desfazer a sua mão? Vão acabar pedindo que a Argentina devolva a Copa de 86 por causa do gol que eu fiz com a mão contra a Inglaterra. Ou decidindo repetir aquele jogo. Nada de voltar no tempo, viejo. Para com isso. O que está feito, bem ou mal, está feito. Volver é nome de tango.
- Mas você nunca sentiu remorso?
- Re... o quê?

Thierry Henry finalmente cede. Não insiste na expiação da sua culpa. Raciocina assim: se a França for mal na Copa, será castigo suficiente. Se a França ganhar a Copa, então rasgará as vestes, derramará champanha sobre a própria cabeça e será esmagado e carregado no ar por homens suados, como contrição.

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