quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Choque cultural

L. F. Veríssimo ( O mundo é uma bola, Ática: 2006)
Todos ficaram preocupados quando o Márcio e a Bete começaram a namorar porque cedo ou tarde haveria uma choque cultural. Márcio era louco por futebol, Bete só sabia que futebol se jogava com os pés, ou aquilo era basquete? Avisaram a Bete que para acompanhar o Márcio era preciso acompanhar a sua paixão e ela disse que não esquentassem, iria todos os dias com o Márcio ao Beira Mar, se ele quisesse.
- Beira Rio, Bete...
Naquele domingo mesmo, Bete estava com Márcio no Beira Rio, pronta para torcer ao seu lado, e quase provocou uma síncope em Márcio quando tirou o casaco do abrigo.
- O que é isso?!
Estava com a camisa do Grêmio, em marcante contraste com o vermelho que Márcio e todos à sua volta vestiam. Desculpou-se. Disse que pensara que pudesse escolher uma camiseta que combinasse com a roupa e ...
- Está bem, está bem - interrompeu o Márcio. - Agora veste o casaco outra vez.
- Certo - disse Bete, obedecendo. E em seguida gritou "Inter", depois virou-se para o Márcio e disse: - O nosso é o Inter, não é?
- É, é.
- Inter! Olha, eu acho que foi gol!
- O jogo ainda não começou. Os times estão entrando em campo.
Bete agarrou-se ao braço de Márcio.
- Você vai me explicar tudo, não vai? Gol de longe também vale três pontos?
- Não. Vale dois. O que que eu estou dizendo? Vale um.
Mas Bete não estava mais ouvindo. Estava acompanhando um movimento no gramado com a cara de incompreensão.
- Pensei que em futebol se levasse a bola com o pé.
- É com o pé.
- Mas aquele lá está levando embaixo do braço.
Márcio explicou que aquele era o juiz e que estava levando a bola embaixo do braço para o centro do campo, onde iniciaria o jogo. Não, os outros dois não estavam ali para evitar que tirassem a bola das mãos do juiz, como no futebol americano. Eles eram os auxiliares do juiz. O que os auxiliares faziam?
- Bom, quando um dos auxiliares levanta a bandeira, o juiz dá impedimento.
- E o que o auxiliar faz com o impedimento?
Márcio suspirou. Foi o primeiro dos 117 suspiros que daria até o namoro acabar duas semanas depois. Explicou: - Os auxiliares sinalizam para o juiz que um jogador está em impedimento, isto é, está em posição irregular, impedido de jogar, e o juiz apita.
- Meu Deus!
Márcio olhou para Bete. O que fora?
- O juiz apita?! - perguntou Bete, com os olhos arregalados.
- É. O juiz sopra um apito. Aquilo que ele tem pendurado no pescoço é um apito.
- Ah.
Bete sentiu-se aliviada. Por alguns instantes, a ideia de um homem que apitava, sabia-se lá por que mecanismo insólito, quando lhe acenavam uma bandeira, parecia sintetizar toda a estranheza daquele ambiente em que se metera, por amor. Ele não apitava. Soprava um apito. Era diferente.
Mas Bete notou, pela cara do Márcio quando ela disse "Ah", que estava tudo acabado.

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